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Estado de emergência – Texto de Rafael Ayala

15 maio

Se por um lado Bauru engatinha quando o tema é tratamento de água e esgoto, por outro, quando o assunto é a dengue, a cidade quebra recordes.

Nesta última segunda-feira, 13, Bauru atingiu o mais alto índice de pessoas infectadas pelo vírus da dengue em sua história: 4.399 casos confirmados em apenas 5 meses.

Segundo o Ministério da Saúde, uma cidade entra em epidemia quando atinge 333 casos por 100 mil habitantes. Bauru tem aproximadamente 350 mil habitantes (estatísticas IBGE/2012), portanto a doença já se encaixaria na categoria caso registrasse 1165 casos. Ou seja, estamos “epidemicamente” quase 4 vezes acima da média.

O que nós, residentes da cidade, queremos saber é: até quando a prefeitura e a secretaria municipal de saúde continuarão lidando a dengue como um problema comum? E por que ainda não foi decretado estado de emergência?

O decreto de “estado de emergência” normalmente é utilizado para desastres de grande porte, e indica que o município ou estado tem condições de resolver a situação apenas com os próprios recursos, mas necessita de complementação do governo estadual ou federal, respectivamente. Além disso, o decreto facilita o processo de contratação de efetivo para combater a doença, deixando-o menos burocrático.

Outras cidades do interior paulista como Araçatuba, Andradina, São José do Rio Preto e Catanduva decretaram estado de emergência em situações menos graves.

Temos um prefeito que possivelmente se candidatará a deputado federal em 2014 e, além do mais, está em uma lista de nomes cotados pelo PMDB paulista para a disputa pelo Governo do Estado no ano que vem, como vice-governador.

Ao que se parece, existem muitas questões políticas a serem decididas antes de se decretar estado de emergência. Afinal, se por trás dos 82% de aprovação o prefeito pop star demonstrar ter muito o que resolver em âmbito municipal, como conseguirá convencer seus superiores que é capaz de resolver nas esferas estaduais e federais?

Texto de Rafael Ayala

O CORVO de Edgar Allan Poe – Tradução Fernando Pessoa

4 maio

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
“Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.

É só isto, e nada mais.”

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais –
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,

Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
“É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.

É só isto, e nada mais”.

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
“Senhor”, eu disse, “ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi…” E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.

Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.

Isso só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
“Por certo”, disse eu, “aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.”
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.

“É o vento, e nada mais.”

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,

Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu, “mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.”

Disse o corvo, “Nunca mais”.

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,

Com o nome “Nunca mais”.

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, “Amigo, sonhos – mortais
Todos – todos já se foram. Amanhã também te vais”.

Disse o corvo, “Nunca mais”.

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
“Por certo”, disse eu, “são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp’rança de seu canto cheio de ais

Era este “Nunca mais”.

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu’ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,

Com aquele “Nunca mais”.

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,

Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
“Maldito!”, a mim disse, “deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!”

Disse o corvo, “Nunca mais”.

“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!

Disse o corvo, “Nunca mais”.

“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!”

Disse o corvo, “Nunca mais”.

“Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!”, eu disse. “Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!”

Disse o corvo, “Nunca mais”.

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,

Libertar-se-á… nunca mais!

Conversas com a Morte – Parte III

1 maio

conversas com a morte vinheta

Outro terrorista maluco que ganha às páginas dos jornais. Desta vez foi um atentado à bomba que atingiu um evento qualquer que acontecia em… Onde mesmo? Nem sei mais. Parece já ter virado um hábito, nem nos surpreendemos. Agora começa tudo de novo, um grupo radical assumirá a autoria do ataque, simpatizantes queimaram bandeiras em celebração, a ONU, o Vaticano e uma infinidade de políticos e ONGs sem importância condenarão o atentado e por fim um governo totalitário vestido de trajes democráticos atacará ferozmente um país cheio de água negra com a desculpa que a guerra manterá a paz. Meio ridículo se você pensar bem… Diante de tudo, foi impossível conter meu assombro.

– Meu Deus.

– Deus? Não sabia que você era do tipo religioso.

Desta vez admito que ele conseguiu me assustar. Não foi o fato de ele ter surgido do nada ao meu lado, já havia me acostumado com isso. É que desta vez ele não estava como sempre, parecia mais sombrio eu acho. Suas roupas, seus modos, até suas expressões estavam estranhas. Eu não sabia bem o que era, mas tinha certeza que havia algo diferente em meu convidado…

– Então é de religião que iremos tratar hoje?

– Para ser sincero prefiro evitar esse tema, não gosto de falar a respeito de bobagens. Além do mais, tive muito trabalho hoje.

– Sim, eu vi nos jornais.

– Imagino que sim. É incrível, mas a estupidez humana consegue me surpreender a cada dia. Olha não gosto mesmo de falar de religião, mas admito que achei bem interessante que a primeira coisa que ouvi de você hoje, foi um clamor a uma divindade.

– Por quê? Pelo que sei, esta é uma expressão bem comum.

– Por isso mesmo. Ela é extremamente comum… É engraçado pensar o quanto a figura de deus está ligada a cultura humana. Acho que vocês dão créditos demais a algo que pode nem existir.

Ri enquanto ele falava.

– Achei que não quisesse falar de religião.

– Mudei de ideia.

– Entendo. Você não crê em Deus?

– Sabe, não sei ao certo. Acho que não consigo crer naquele deus que é passado pelas religiões modernas. Ele me parece tão… cruel. Veja por exemplo o cara que orquestrou este ataque. Quem você acha que deu as ordens a ele?

– Deus?

– Pelo menos na cabeça dele, sim. Pense bem, é possível que ele achasse que era apenas um instrumento nas mãos de uma força maior. Logo, quem foi o responsável, a peça ou o jogador.

– Pode até fazer sentido, mas até onde que eu sei, nenhuma religião endossa atos como estes.

– Mais ou menos. Essas ideias que discutimos por exemplo. Imagine que elas alcançassem um grande número de pessoas, quantas interpretações diferentes teriam? Interpretações que muitas vezes não teriam nada haver com você ou comigo. Com as religiões é assim. Alem do mais, o ser humano tem certa tendência ao caos e ao ódio. Por isso a figura de deus existe, e mais, por isso que o inferno existe… Se não fosse assim, não tenho dúvidas que vocês já teriam se destruído há muito tempo. Deixe-me dar uma visão mais ampla disso tudo.

Neste momento ele colocou uma espécie de manto ou véu diante de meus olhos, impedindo minha visão. Quando ele retirou, instantes depois, não estava mais em meu quarto. Estava em um tipo de laboratório, daqueles onde se fazem os experimentos e testes que as entidades de proteção dos animais tanto odeiam. A minha frente havia uma redoma de vidro dividida em duas por uma tabua negra. Dentro havia dois grupos de ratos, cada um de um lado, um branco e outro negro.

– Que espécies são estas?

– Não me admira que você não conheça. É uma espécie nova, mais inteligente e evoluída em comparação as demais… Bom, mais ou menos. Eu batizei de Rattus Sapiens.

 Rattus Sapiens? Sutileza não é seu ponto forte. Mas me diga uma coisa, testes assim não são realizados com camundongos?

– Realmente, mas como eu disse esta é uma espécie nova, e se encaixa melhor no meu experimento por conta de uma característica que você achará bem interessante. Veja só.

Ele retirou a tabua que separava os dois grupos de ratos, expondo um ao outro. Em poucos instantes, os ratos se amontoaram em torno de seu próprio grupo em cada um dos extremos da redoma, tomando assim o máximo de distância possível entre eles, sendo que nenhum deles tinha coragem de sair de seu próprio amontoado. Mesmo sendo da mesma espécie, nenhum deles tinha coragem de interagir com o outro grupo.

– Viu só? A desconfiança e o medo pairam em ambos os grupos, mesmo eles sendo basicamente iguais, só mudando a cor. Agora veja o que acontece com todo esse medo quando existe uma certa… motivação em jogo.

Neste instante, meu companheiro colocou no meio da redoma um prato cheio de grãos, suficientes para alimentar os dois grupos com facilidade e ainda sobrar. Mesmo assim, no momento que viram o prato com a comida, o comportamento mudou. As duas populações avançaram ferozmente em direção ao prato, mas ao invés de simplesmente comerem juntos, começaram a se atacar, com as unhas e as presas, visando matar os rivais, numa cena grotesca e enojante. Ao fim de dez minutos, restavam somente um rato branco que ainda lutava contra dois ratos negros. Entretanto, os três estavam tão machucados, que parecia impossível para qualquer vencedor aproveitar os despojos. Eles iriam morrer, e o prato permaneceria cheio, do mesmo modo que quando o conflito começou.

– Realmente incrível.

– Não é? Acho que me enganei… Qualquer outra espécie iria ficar feliz em dividir o alimento, desde que também se alimentasse. Estes pequenos ratos não. Preferiram morrer a aceitar a presença do outro. Talvez eles não fossem tão evoluídos assim…

– Acho que não.

Dito isso, tudo ao meu redor se fragmentou. Estava de volta ao meu quarto. Meu companheiro parecia ter recuperado a feição serena que lhe era de praxe.

– Sabe… Talvez eu também estivesse errado sobre Deus. Talvez ele até exista… Acho que ele só está com muito medo de vocês.

Ele se sentou ao meu lado, na tela do meu computador uma nova notícia. Cinco pessoas da mesma família haviam sido mortas em uma chacina em São Paulo. Segundo a polícia o motivo do crime foi um desentendimento com um dos vizinhos por conta de um jogo de futebol… Rattus Sapiens… Realmente sutileza não é o forte dele.

Que sejam colocado os pingos nos is – Texto de Rafael Ayala

29 abr

Em entrevista com a Associação Paulista de Jornais (APJ), publicada pelo JC, João Galassi, empresário e presidente de entidade que reúne 2700 lojas, aborda o tema Capitalismo Consciente, no qual o mesmo afirma que, no meio supermercadista, as empresas precisam ter o propósito de montar um negócio que vise não só lucrar, mas também estabelecer uma cultura consciente onde todos estão incluídos dentro dos mesmos valores de transparência e confiança.

Seria interessante que o mesmo ocorresse com o transporte público de Bauru.
Recentemente, o prefeito Rodrigo Agostinho decretou um aumento de 12,5% nas tarifas de ônibus, sendo que em março do ano passado houve um outro aumento em torno de 7%.

Entre as justificativas dadas pela Emdurb, em seu próprio site, estão: o aumento do preço dos combustíveis e da mão de obra; acréscimo no preço dos veículos; e a diminuição do número de passageiros transportados.
O que nós, residentes da cidade, enxergamos, entretanto, são ônibus velhos, cada vez mais lotados e motoristas que “se viram nos trinta” para exercer a função do cobrador ao mesmo tempo em que dirigem.

Segundo a própria empresa, a tarifa é elaborada respeitando os parâmetros estipulados pelo Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes (GEIPOT). Este, por sinal, afirma que o valor da passagem corresponde ao resultado da divisão dos custos necessários a produção dos serviços, dividido pelos passageiros pagantes.
Prefeitura e/ou Emdurb, onde estão, afinal, os dados que comprovam a diminuição no número de passageiros? E os que confirmam o aumento da frota? Ou o do número de funcionários e os gastos com os mesmos?

Na câmara municipal, o vereador Roque Ferreira (PT) tem sido o pivô dessa discussão, propondo uma Comissão Especial de Inquérito (CEI) para investigar a planilha de gastos apresentada pela Emdurb.

O ptista e sua equipe avaliaram a planilha, apontando inúmeras irregularidades nos cálculos, estimando uma supervalorização de 14 à 17,5% na tarifa.

O que observa-se, portanto, é totalmente contrário ao que propõem o Capitalismo Consciente de Galassi. Isto é, uma empresa que visa somente o lucro, exigindo muita confiança e exercendo pouca transparência.

O povo de Bauru exige respostas.

Texto de Rafael Ayala

Conversas com a Morte – Parte II

23 abr

conversas com a morte vinheta

Cada vez mais me convenço que habilidade social não é uma das qualidades de minhas alucinações. Pensando bem, esse também não é meu ponto forte, mas ficar me encarando por mais de 10 minutos enquanto escrevo não é lá muito agradável.
– O que você está escrevendo ai? Algo sobre mim?
– Por que acha que é sobre você?
– E sobre o que mais seria? Cá pra nós, ultimamente você estava sem ideias… Ai eu apareci. E olha que pra falar a verdade, acho que essa ideia sequer é sua.
– Que?
Ele riu.
– Você talvez tenha visto ou ouvido algo assim em algum lugar, só não se lembra… É típico do homem fazer isso. No fim das contas, você realmente acha que aquilo é algo que você criou, mesmo não sendo.
– Entendo.
– Alias, pra dizer a verdade, não acho que você teria a capacidade de criar algo tão complexo quanto eu.
– Você realmente tirou o dia pra me encher não é mesmo?
– Criança, não é você mesmo que diz que sou apenas uma alucinação sua. Logo, tudo o que digo, tudo o que sou é fruto da sua cabeça… Não sou eu que penso assim, é você. Na verdade, nós dois sabemos que tudo o que eu digo é verdade. Você acha que tem algum talento? Existem milhões de pessoas no mundo com o dobro… Não, o triplo da sua genialidade. Comparado a elas, estas palavras desconexas, estas linhas mal escritas não são nada.
– E daí? Escrevo pra mim mesmo. Por meus próprios motivos.
– Isso é o que você diz, mas sabe que não é verdade. Você escreve estas porcarias pras pessoas verem e te elogiarem. Dizerem que você é um grande escritor, que você tem um grande talento… Você faz tudo pra chamar atenção. Mas mesmo assim…
– Mesmo assim?
– Eu lhe disse uma vez que ma definir como uma mera alucinação é quase uma ofensa, lembra-se? Eu disse por um motivo muito simples… Você não tem controle sobre mim, eu escolhi você. Eu escolhi falar com você. Você é apenas uma forma de me entreter. Mas devo admitir que você pelo menos me diverte. Veja eles – Ele apontou a meus colegas que estavam na sala enquanto eu digito – Cada um deles perdidos em suas fantasias, assistindo suas caixas de Pandora se abrirem em suas frentes. Totalmente entediantes cada um deles. E é nesse ponto que vocês se diferenciam. Você não me irrita… Tanto.
– Caixa de Pandora não é?
– A caixa de todos os males. Você sabe qual é o maior mal que aflige a humanidade nos dias de hoje?
– Qual?
–A ignorância… Todos estão tão preocupados com suas vidinhas medíocres que não buscam conhecimento, ou mesmo compreender outros pensamentos. Sabe qual é o resultado disto?
Preconceito, intolerância, estupidez. Eles pegam algumas palavras escritas em um velho livro empoeirado e faz daquilo um manual macabro que só sabe perpetuar o ódio e a escravidão.
– Tenho que admitir que essas caixas, como você as chamam, não ajudam muito.
– Pra dizer o mínimo. Elas emburrecem ao mesmo tempo em que entretém. Escravizam ao mesmo tempo em que divertem. Chega a amedrontar imaginar aonde isso vai dar. Por isso gosto tanto de falar com você… Você não é tão alienado. Pelo menos tem alguma consciência… Talvez mais que alguma.
– Talvez… Quem sabe?
– Em breve saberei… Sou realmente bom nisso, sou bom em conhecer as pessoas, em entendê-las.
– Não, você não é… Você é apenas uma alucinação, fruto da minha cabeça, de alguma paranoia ou problema psicológico meu.
Nesta hora ele pareceu realmente incomodado com o que eu disse.
– Pare de tentar simplificar tanto. Nem eu, nem você somos tão simples assim. Sabe disso muito bem.
– Talvez.
– Além do mais, se você estivesse incomodado tanto assim comigo, sabe muito bem como me mandar embora… Na verdade é bem simples.
– Basta que eu volte a aceitar as regras, que eu volte a abrir minha caixa.
– O problema não é a caixa, é o amor a ela. É a deixar pensar por você, ela tomar suas decisões… Na verdade é mais simples, é mais fácil assim. Isso me irrita um pouco em vocês… Sempre em busca dos caminhos mais fáceis. Não se esforçam, tentam sempre dar um jeitinho. Mas, fazer o que não é? É típico de vocês, de sua espécie.
– De minha espécie… Você adora usar esse argumento.
– Falha minha. Peço perdão, talvez seja uma tendência humana generalizar as coisas.
– Humana? Agora você é humano? Realmente é difícil te entender.
– Isso porque é difícil te entender… Lembre-se, eu sou parte de você. Mas ao mesmo tempo…
– Ao mesmo tempo você é algo que eu não controlo.
– Exatamente. Sou como se fosse o demônio oculto na sua alma. A própria forma como me vê, como a personificação da morte, é suficiente pra deixar a maioria das pessoas assustadas, mas não com você, acho inclusive que você aprecia minha presença. Tenho essa impressão. Afinal de contas, não existem muitos os que são como você. Não são muitos os que têm coragem de se
libertarem de suas amarras, de suas correntes. Alias, deixe-me mostrar uma coisa. Olhe mais uma vez para eles.
Quando olhei para meus colegas eles não estavam do mesmo modo. Havia cordões ou fios, sei lá, amarrados em suas mãos, pés, troncos, cabeças. O mais assustador eram os fios que saiam de seus olhos e bocas e se entrelaçavam… De fato era uma cena grotesca.
– Agora você entende? Todos eles… Escravizados, presos a hábitos, rotinas, dogmas. Um grande homem propõe alguns termos em um contrato e assina com tinta vermelha e por mais de dois anos vocês deturpam suas palavras. E é com base nessa deturpação, nessas mentiras, que vocês norteiam suas vidas. É triste pensar nisso… Bom, acho que está ficando tarde, melhor eu ir embora. Se precisar de mais alguma coisa… Estarei por perto. Até a próxima criança.
Novamente ele esvoaçou no ar, desapareceu da mesma forma que da última vez. Quanto a mim, simplesmente sai da frente da TV.

Texto de Rafael de Paula

Conversas com a Morte – Parte I

15 abr

conversas com a morte vinheta

– Você consegue imaginar quantas pessoas existem no mundo neste exato momento?

Ele finalmente falou. Já havia perdido as contas de quanto tempo ele ficou ali, parado, apenas me encarando, por assim dizer. Nem sei se é possível afirmar isso. Não consigo ver seus olhos, apenas meu reflexo em seus óculos circulares. Por estranho que pareça, apesar de ser a primeira vez que o vejo assim, tão perto, não sinto medo, mas admito que sua presença me incomoda.

– Mais de oito bilhões – ele continuou – Oito bilhões de pessoas. Você tem alguma noção do que é isso? É quase inimaginável para alguém como você visualizar um número como este.

– Alguém como eu?

– Não me leve a mal. Não tenho a menor intenção de ofendê-lo, mas você é uma criatura de pensamento limitado. E não me refiro apenas a você, esta é uma das maiores e mais evidentes marcas de sua espécie. O ser humano é assim.

– Se você diz. Alias quem é você?

– Por que me pergunta o que já sabe a resposta?

Ele sorriu enquanto eu tentava analisar um pouco mais meu visitante, aquele homem vestido elegantemente com um smoking negro, cartola e grandes óculos. Dei de ombros.

– Então no fim você é apenas um sonho, ou talvez uma alucinação.

– É possível, afinal você nunca foi um modelo de sanidade, mas acho que me definir como uma mera alucinação, ou mesmo um sonho, é fazer pouco caso de mim. Não criança, eu sou mais do que isso… Mas para ser sincero, o que eu sou não importa muito neste momento.

– Talvez então, seja melhor perguntar por que você esta aqui.

– Diga você.

– Eu?

– Sim você. É a primeira vez na sua vida que você deixou de me ignorar, que você olhou para mim. Mesmo assim estou realmente admirado, a maioria das pessoas, principalmente com sua idade, simplesmente finge que eu não existo até que chegue um momento em que não conseguem mais. Até que chegue um ponto onde tudo o que reste, sou eu.

– Entendo. Mas devo admitir que até o momento você só levantou mais dúvidas, ao invés de responde-las.

Ele riu novamente.

– Esse é o problema com vocês. Estão sempre tão ocupados em busca de respostas. A maioria das vezes, as questões nem são tão importantes assim. É realmente uma criatura curiosa o ser humano.

Desta vez eu que não contive o riso.

– Você fica falando essas coisas como se tivesse toda a propriedade do mundo, como se fosse uma espécie de deus, mas até onde que eu saiba você é apenas uma ilusão, uma ideia.

– Sua ideia. Estou aqui porque você quer que eu esteja. Você se acha muito especial, mas lá no fundo você sabe que não é. Você é apenas um grão de areia, igual a tantos outros. Eu sou o seu diferencial. É a minha presença que faz você ser quem você é. É a minha sombra, que te faz se esforçar pra deixar uma marca no mundo.

Fico em silêncio. Toda essa perspectiva me assusta. Nunca tinha parado para pensar em tudo isso. Quanto tempo ainda me resta. Talvez seja esta a maior maldição do homem. Ter ciência da morte, mas não saber quando ela virá… Morte, palavra engraçada. Tão aterrorizadora que preferimos ignora-la, fingir que ela não existe… Mas o gozado, é que quando ela está a sua frente, nem é tão amedrontadora assim. É apenas um simpático senhor, de smoking negro, cartola, grandes óculos redondos e segurando um relógio de bolso… Relógio? Sim, há um relógio em sua mão. Como eu não havia reparado antes?

– Ah, finalmente você o vê? Isso é bom… Tomou ciência de quem eu sou, mas principalmente de quem você é… Bom, mas já está ficando tarde e eu sei que você tem outros compromissos.

– Posso te perguntar mais uma coisa?

– Claro.

– O que eu faço agora?

Mais uma vez ele sorriu, mas desta vez foi diferente. Nas vezes anteriores havia um cinismo perturbador em seu gesto. Cinismo este que desapareceu, deu lugar a um sorriso doce, quase que patriarcal. Eu finalmente pude ver os seus olhos.

– Você não entende criança? Ver este relógio significa que você agora tem ciência que não é eterno. Que um dia, seja daqui a cinquenta anos, seja daqui a uma semana, você, como todas as pessoas, vai morrer. Mas isso tem seu lado positivo. Você pode fazer o que quiser, sem mais se preocupar com a opinião alheia. Seu mundo é você e ninguém mais. Isso é liberdade. Vocês são realmente criaturas curiosas…

Ele disse isso enquanto se desfazia no ar, como fumaça. Acho que voltarei a conversar com ele algum dia, mas até lá… tenho toda minha vida pra aproveitar.

Texto de Rafael de Paula.

Na base da raça

12 abr

Libertadores da América. Se existe uma competição que mexe com os torcedores brasileiros é essa. Tão imprevisível que é capaz de transformar uma equipe humilhada, limitada e que sofre a mais de uma década com más gestões, em um exemplo para qualquer time do mundo. Falo do Palmeiras, que ontem no Pacaembu provou que mesmo um elenco tão limitado e ainda por cima que sofre com um número absurdo de contundidos, pode sim superar qualquer adversário na base da raça e superação.

Foi de arrepiar qualquer palmeirense assistir esse jogo. Contra o bom time do Libertad do Paraguai, a equipe alviverde mostrou uma disposição cada vez mais rara no futebol mundial. Correram, dividiram, se doaram em campo, não havia bola perdida. Quando Wesley foi expulso, 10 jogaram e marcaram por 11, não baixando a cabeça e nem desistindo em momento algum. Todos ali estavam cientes que os adversários eram melhores, mais bem armados e mais entrosados, mais isso não importava. Embalados pelas vozes de mais de 35 mil palmeirenses que lotaram o estádio, o Palmeiras foi pra cima e foi recompensado com a vitória.

Mas por que a entrega que teve os jogadores do Palmeiras se tornou tão rara? Times melhores e mais badalados não conseguem fazer jus a seus nomes e camisas em campo, porque muitas vezes seus jogadores parecem mortos em campo, se arrastando. Não correm, não lutam, não tentam. O amor à camisa se tornou item raro, e o torcedor sabe disso. Hoje, a maioria dos craques não liga a mínima pra quem está assistindo, torcendo por eles, antes só querem saber de contratos mais pomposos, de baladas cheias, de saírem nos tabloides sociais ao lado de beldades fúteis e interesseiras. O futebol deixou de ser paixão, virou negócio.

Mas ainda temos esperança, esperança que o espírito que o Palmeiras apresentou ontem contagie outros grandes do Brasil. Que a vontade de vencer se torne padrão nos times brasileiros, que não importe que haja limitação técnica, desde que haja superação. Talvez assim voltemos a ter o melhor futebol do mundo, talvez não. Mas com certeza vai ser bem mais divertido de assistir.

Texto de Rafael de Paula

Julgamento da “Normalidade”

9 abr

Recordo-me de uma propaganda do governo federal a respeito de minorias. Ela dizia algo como “ser diferente é normal”, ou alguma coisa assim. Esta frase virou uma espécie de mantra de inúmeras ONGs, associações e grupos bem intencionados, mostrando que você não precisa ser como todo mundo, você só precisa ser você mesmo. Com certeza são ideias lindas, pena que a realidade não seja assim. O fato é que se uma pessoa, por alguma razão qualquer, foge dos padrões impostos pela sociedade, essa pessoa é julgada como sendo estranha e anormal, e por tanto, deve ser duramente reprimida em seu meio social, mesmo que suas “peculiaridades” não sejam sua culpa. E não escrevo isso por ouvir falar, legislo em causa própria.

Sou diagnosticado clinicamente com um tipo de fobia social chamada antropofobia. Falando de forma bem resumida, não me sinto a vontade em ambientes com muitas pessoas reunidas, e isso é desde a infância. Nunca gostei muito de gente, mas nos últimos anos tem piorado muito, a ponto de ter que sair carregado por desmaiar em uma festa. Até ai tudo bem, como eu disse não gosto muito de gente, evita-las pra mim é até agradável. O problema é que no dia a dia somos forçados a estar nestes lugares, seja em ônibus lotados, lojas em liquidação ou mesmo reuniões de amigos. E é ai que meus problemas aumentam. Só o fato de ter esta patologia já é algo bastante incomodo, mas ser julgado por isso é cada vez mais desagradável.

Por conta desta fobia desenvolvi algumas técnicas que me permitam estar fora da minha zona de conforto sem “pirar”. Uma delas é aumentar ao máximo o volume em meus fones de ouvido e fechar meus olhos, ir pra meu mundo. Tenho que fazer isso, mas como difere do comportamento normal das pessoas, é claro que está errado. Hoje mesmo estava vindo para faculdade e uma colega minha entrou, como sou educado cumprimentei e ela correspondeu cordialmente. Só que como o ônibus estava com muita gente por conta do horário, fechei meus olhos e fiquei na minha. Não estava incomodando ninguém, estava ali no meu cantinho esperando chegar ao meu destino. Só que quando abri os olhos para me situar, saber onde exatamente estava, percebi de relance que ela estava me olhando, e olhando de um jeito que conheço bem. Um misto de repulsa e estranheza que vejo em várias pessoas quando olham pra mim. Era como se eu fosse portador de alguma chaga contagiosa, ou algo assim. E por quê? Por não ser como todo mundo?

O pior de tudo é que sequer me abalei com aquilo, estava acostumado. Desde que me entendo por gente vejo isso, ouço que devo ter algum problema de cabeça ou coisa assim. Acabou se tornando um hábito, e não deveria ser. O que importa se eu não sou como todo mundo? Se eu tô cumprindo a lei e não prejudicando os demais, ninguém deveria sequer opinar na minha vida. Mas tudo bem. Francamente posso viver com esse estigma de louco, já me acostumei com ele, talvez eu até seja. Além do mais, a sanidade é muito chata.

Texto de Rafael de Paula